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Do 'tem base?' ao 'aném': UFG estuda expressões típicas da fala goiana

Pesquisa revela ainda que 83% dos goianos não usam pronomes reflexivos. Projeto já foi tema de teses de doutorados e deve inclusive virar livro.

Um projeto desenvolvido na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG) estuda a língua portuguesa falada pelos goianos. Intitulada “Português Contemporâneo Falado em Goiás", a pesquisa revelou as diferentes variações usadas para se comunicar, além de algumas expressões que reforçam a identidade de quem nasce no estado, que vão dos tradicionais “uai”, “trem” e “aném” ao 'tem base?'.

Os estudos, conduzidos pelo Grupo de Estudos Funcionalistas (GEF), começaram em 2003, mas foram oficializados em 2009. Foram entrevistadas 36 pessoas, de diferentes idades, que nasceram em Goiânia ou na cidade de Goiás, antiga capital do estado. Destas, 12 foram selecionadas e tiveram a fala acompanhada com análise mais aprofundada.

 O estudo, também chamado de "Fala Goiana", identificou como uma das marcas goianas o uso de expressões como “quando dé fé”, usada normalmente para criar um clima de suspense na narrativa de uma história, que remete a “de repente”. Outra expressão muito característica é “tem base?”, citada quando se quer questionar o fundamento de uma determinada ação ou fato.

De acordo com a coordenadora do projeto, a professora Vânia Cristina Casseb Galvão,
apesar de analisar algumas expressões, a primeira fase dos estudos foi focada no uso dos verbos de percepção, que são aqueles que fazem referência a funções do corpo, como ver, olhar, ouvir, cheirar e escutar. Os pesquisadores descobriram que os goianos costumam fazer alterações no sentido de algumas dessas palavras e as usam com objetivos que vão além do seu significado normativo.

Um exemplo é a palavra olha, que é muito usada como sinônimo de vigiar, avaliar e até mesmo como elemento chamativo para se vender algo. Porém, a pronúncia muda e a expressão passa a ter a fonética “ó”, por exemplo: “ó o leite”, “ó a pamonha”, “ó que aconteceu comigo”, entre outras.

“O verbo olhar foi extremamente produtivo nesse nosso objetivo de descobrir a identidade goiana. Isso porque ele tem uma cadeia de abstratização muito grande e na fala deixa de ter o seu significado básico que é o de ver. Aí ele é usado em outras formas, como quando alguém pergunta no que a pessoa trabalha e ela diz: ‘olho menino’, ou seja, atua como babá. Ou quando diz: ‘vou olhar uma casa para comprar’. Na verdade, a pessoa vai avaliar a casa, mas ela diz que vai lá para ‘olhar’”, destacou Vânia.

Esses verbos de percepção foram analisados pelo professor de linguística na UFG e vice-coordenador do projeto, Leosmar Aparecido Silva, na sua tese de doutorado. Ele explica que o verbo olhar também é muito usado pelos goianos para introduzir uma fala. “Muitos dizem: ‘olha, vou te contar uma coisa’, ou seja, o verbo deixa de ter o significado base de ver e passa a ser um elemento para atrair a atenção”, relatou.

fot_g1_2016_01Atendente Fabiana Moraes: 'Quando dé fé já falei uai sem perceber' (Foto: Fernanda Borges/G1)

“Além disso, as pessoas usam muito o verbo olhar seguido de um qualificativo, por exemplo: ‘ele está olhando torto’, ‘ele está olhando enviesado’, ‘ele está de olho na menina’. Sendo assim, o verbo descolou do seu sentido concreto e é usado pelos goianos para descrever uma série de outros significados, até mesmo de julgamentos”, destacou o professor.

Segundo Leosmar, outro recurso muito usado pelos goianos com o objetivo de intensificar uma ação é o “até”. “Quando o falante quer enfatizar uma determinada situação, ele diz: ‘dancei até, ontem’, ‘fui a uma nova churrascaria e comi até’. Isso quer dizer que determinada ação teve intensidade e ele quer ressaltar esse fato”.

Reflexividade
Na segunda fase do projeto, a professora de linguística da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e doutoranda em linguística na UFG Déborah Magalhães de Barros passou a estudar a reflexividade na fala goiana. Ela constatou que, normalmente, os pronomes “se”, “me” e “te” deixam de ser usados.

“É muito comum ouvirmos nas falas dos goianos expressões como ‘eu machuquei’, ao invés do ‘eu me machuquei’, ou ‘ele cansou’, no lugar de ‘ele cansou-se’. Na tradição do português brasileiro, esses pronomes já são considerados como regras variáveis, ou seja, eles podem ou não ser usados. Mas entre os goianos, foram muito marcantes os contextos em que a pessoa não usou essa marca”, destacou Déborah.

Segundo ela, a pesquisa apontou que 83% dos goianos não fazem o uso dos pronomes reflexivos nas suas falas. “Mas isso demonstra que há um refino da língua portuguesa, já que, mesmo sem o uso desses pronomes, não há prejuízos na comunicação. O que é falado é compreendido por quem recebe a mensagem. Desde que a fala atinja o objetivo, não há certo ou errado, não há julgamento de valor, pois essa mudança é uma particularidade da língua falada em uma determinada região”, explicou a professora.

 A coordenadora do projeto destacou que os pronomes reflexivos são lembrados com maior frequência em expressões têm grande força na fala, como “exploda-se”, “dane-se”, que já tiveram os conceitos relacionados, ou em verbos de emoção. “O termo ‘me’ é usado quando o goiano está tão imerso em uma determinada situação e ele quer ressaltar isso, exemplo: ‘eu me sinto triste’. Já se tratando de uma terceira pessoa, o pronome normalmente não é usado: ‘ele perdeu no Centro’, ‘ele machucou’”, explicou.

A professora Vânia ressaltou, ainda, que o não uso da reflexividade dá sinais de como o português será falado no futuro. “Daqui a cem anos as pessoas não vão nem lembrar ou destacar o uso da reflexividade. A língua está se refinando ao longo dos anos e os goianos têm essa habilidade de se comunicar, usando o mínimo possível. Esse uso na fala ajuda a fluir, é compartilhado na sociedade e todo mundo entende”, ressaltou.

Agora, na terceira fase do projeto, a professora Déborah estuda em sua tese de doutorado as origens da língua portuguesa, a partir do latim e de uma língua românica, que é o Italiano. “O objetivo é saber como a língua ela chegou até Goiás e como ela sofreu alterações ao longo dos anos”, disse.

Produção Científica
O projeto “Português Contemporâneo Falado em Goiás” já resultou em duas bolsas de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e seis projetos de iniciação científica.

Além disso, soma cinco dissertações de mestrado, quatro teses de doutorado e inúmeras publicações e apresentações de trabalhos em eventos científicos no Brasil e no exterior. A professora Vânia explicou, ainda, que o estudo também deve resultar em um livro.

“Ele servirá de base para um projeto chamado ‘Rede de Estudos de Língua Portuguesa Ao Redor do Mundo’, que envolve diretos países que falam a língua portuguesa. Além disso, o nosso objetivo é valorizar a identidade de um povo e mostrar para ele que a forma como ele fala não é errada e, sim, se desenvolveu a partir de um contexto social. Queremos que os goianos entendam que o que eles falam também reflete o seu convívio em sociedade”, concluiu.

fot_g1_2016Professores Vânia, Leosmar e Déborah estudam português falado por goianos (Foto: Fernanda Borges/G1)

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